Casa de Sil de Polaris

Porque não se fica velho duas vezes !!!

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Local: Brazil

Eu sou proprietária dessa casinha magnífica que tem sofrido reformas ... ^^

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Faz quinze meses, muito mais de um ano, que meu avô faleceu. Uma perda que eu sinto todo dia, continuando a parecer que tudo aconteceu ontem. Jamais voltarei a ver aquele rosto querido nesta terra e nesta vida a não ser por lembranças em minha mente e por retratos de família. Continuo a sentir como se tudo fosse uma mentira terrível muito grande, existindo uma falta imensa onde existia meu avô antes. Esta realidade de meu avô ser morto e minha avó ser viúva trouxe sombra para meu coração desde que tudo aconteceu. Não há mais raiva contra deus em meu coração mas há uma saudade e uma tristeza muito grandes, que lágrimas não esmaecem e não têm dom de expressar. Pareceu-me que ele havia sido encantado por um feitiço de sono de onde nunca mais despertar, comigo esperando que ele acordasse a qualquer momento mas nunca vendo um movimento a esse respeito poder acontecer. Havia morte em seu corpo, de uma vez para sempre desta vez, quando sua força e seu poder para afastá-la não estavam mais com ele quando meu avô viu que sua vida estava para terminar. Meu avô aceitou sua morte, com coragem e sem revolta, não temendo partir, pois ele não tinha medo de morrer, como ouvi minha tia preferida dizer uma vez. Partiu feliz, com um sorriso alegre e travesso em seus lábios como eu não via há muito tempo. Ele aceitou partir porque seu corpo tornara-se um fardo.

Saber disso não traz alegria ao meu coração mas tem ajudado a compreender meu pesar, comigo lembrando palavras de meu pai de vez em quando, com o que ele tentara consolar-me: sua morte fôra um passo muito importante em sua vida para meu avô. Pelo que continuo a fazer-lhe visitas diárias desde que ele partiu ao encontro de seus ancestrais mortos e de seus antepassados queridos, tenha chuva, tenha sol, tenha vento, com ou sem formigas picando minhas mãos e meus pés quando estou entregando minha prece de presente para ele. Dar-lhe minha prece é muito mais importante que qualquer mal-estar que eu tenha que enfrentar e não aceitar passar por esse percalço por amor ao meu avô seria de uma fraqueza egoísta não-digna de sua neta. Meu pai maior foi sepultado ali então levarei minha prece para ele ali enquanto velo por seu corpo sepultado para que ninguém venha depredar seu túmulo, como não é impossível de acontecer em minha cidade. Aquela sensação de que tudo não passou de uma mentira terrível continua persistindo em meu espírito porque meu avô era tão presente para mim em minha vida que não é aceitável facilmente compreender totalmente que essa condição foi alterada para sempre de uma maneira irreversível por um poder maior. Seu sorriso de falecimento vem à minha mente toda vez que sinto necessidade de encontrar uma razão para sua morte.

Meu avô faleceu porque compreendeu que seu corpo não poderia fazer mais nada por ele, assim como ele não poderia fazer mais nada por seu corpo, e porque sentiu que seu momento de partida ao encontro daqueles que amara em vida e que partiram antes dele havia chegado finalmente pois ele havia escolhido aquela hora para si próprio por ser necessário saber quando parar de viver, assim como é necessário saber quando parar em cada e toda coisa. Seu sorriso era alegre, satisfeito, tranqüilo, sorrindo com seu rosto inteiro, inclusive com seus olhos, se eu tivesse tido ousadia de incomodar meu avô em seu sono de morte para ver seus olhos sorrindo pela última vez. Resta-me lembrar dele, chorando pela saudade e pela tristeza e lembrando de tudo o que ele era e de tudo o que ele fazia, honrando e respeitando sua memória. Vivenciar luto pela perda de uma pessoa querida muito importante tem sido uma tarefa longa, principalmente quando lembro de meu avô dizendo "que não era para eu morrer com ele quando ele partisse porque morrer é parte natural de nossas vidas". Posso compreendê-lo perfeitamente, admitindo sua sabedoria e querendo atendê-lo, mas esta situação é uma daquelas situações em que razão e sentimento não entram em um acordo por mais que se peleje um trato. Muito de tudo ficou sem gosto para mim quando ele morreu e vê-lo morto foi um golpe muito forte para eu aparar.

Venho vendo flores alegrando e colorindo seu cemitério apesar de ser contra meu gosto levá-las para lá porque não concordo em colher flores de um lugar de vida, como um jardim, para levá-las para um lugar de morte, como um cemitério, porque elas são inocentes. Venho vendo lápides de pedra pelo caminho, com nomes de pessoas falecidas sendo levados completamente pelo tempo, lembrando que somos criaturas finitas por mais que tentemos anular esta condição então nossas lembranças mantidas conosco mesmos ao fim de tudo têm de ser o que estaria valendo para nós diante de deus quando não há mais quem conheceu-nos que ainda esteja vivendo para poder lembrar de nós. Todo legado que deixamos é isto. Todo legado que levamos é isto. Então é muito rico para mim lembrar de meu avô cantarolando suas canções ainda memorizadas que eu parava para ouvir, olhando sua rua de sua sacada para cumprimantar suas filhas e sua neta quando alguma de nós chegava à sua casa, partilhando de suas lembranças comigo ao contar e mostrar muitas de suas coisas. Tem uma nota de saudade entrelaçada com uma nota de tristeza quanto à essas lembranças toda vez por aquele que não está mais conosco nesta terra e nesta vida mas cuja presença era inestimável. Meu avô era meu pai maior, pessoa única de minha família a nunca tentar impor sua vontade sobre mim. Era uma de minhas riquezas infinitas.

Ouço sua voz vindo a mim em minhas memórias muitas vezes, como ecos de um passado, a brincar com seus animaizinhos e a chamar meu nome pela casa. Aguardei algumas vezes ao chegar ao corredor para ver se ouvia passos de meu avô vindo em minha direção, mas então eu ouvia silêncio e este silêncio fazia-me lembrar de porque havia esse silêncio e uma tristeza que ninguém tem como explicar ao certo corroía meu coração: meu avô é morto. Pensei tê-lo visto naquele corredor uma vez, mas era outra pessoa, assemelhada a ele por uma distorção de um reflexo daquela porta de vidro. Minha alegria em pensar que havia visto meu avô por algum milagre correu por entre meus dedos em menos de um instante. Uma ilusão de ótica pode ser muito cruel às vezes. Descobri uma de suas travessuras, dias atrás, que fez-me sorrir um pouquinho por alguns momentos: ele havia comido bocadinhos de chocolate escondido, deixando alguns chocolates restantes cobertos com embalagem dupla em uma tentativa inocente de evitar que alguém descobrisse que aqueles chocolates estavam diminuindo de número. Meu avô, ainda um menino travesso aos oitenta e dois anos de idade. Continuo sentindo sua presença em meu coração e sinto sua presença em meu coração para ajudar-me a conter minha ira quando estou em uma situação de risco, como meu anjo de guarda também.

Saber que não houve necessidade de fazer sua autópsia trouxe-me um alívio muito grande pois fui testemunha de trinta autópsias em minha vida acadêmica e nunca gostei de assisti-las, muito menos de ver como um corpo ficaria costurado após sua autópsia terminar. Fiquei grata por seu corpo não ter sido cortado e examinado, sem saber a quem estava grata por isso. Vi sua camiseta preferida, que eu conhecia de uma vida inteira, rasgada ao meio sendo pendurada em um varal após ter sido lavada. Um cuidado de minha avó por respeito ao meu avô e por respeito à morte. Imaginei um campo de batalha em forma de mesa cirúrgica de atendimento de pronto socorro e senti gratidão pela luta daqueles médicos, comentada por minha mãe, para salvar aquele que foi meu avô em vida, meu pai maior sempre, então senti-me grata de novo. Mas meu sentimento de ira continua muito intenso ultimamente, desencadeado pela morte de meu avô, embora não mais existindo por essa razão mas por milhares de outras razões tantas quantas vierem, e isto tem atrapalhado obter o que mais tenho rezado para obter, pois retira meu merecimento. Uma outra morte em nossa família fez com que eu visse ossos de meu tio-avô, irmão mais velho de meu avô, postos em um saco plástico preto para haver onde sepultar meu primo. Lembrei que isto era o que estava destinado ao corpo de meu avô mais tarde: tornar-se ossos sem forma.

Não senti revolta por esta constatação. Isto é morte. Seu corpo faria parte desta terra, tornando-se força para ela ao ser consumido por ela. Uma força que iria para raízes de árvores, presentes por toda parte ali perto. Mas eu preferiria que aqueles ossos de meu tio-avô tivessem sido guardados ali junto ao corpo de seu filho morto envolvidos por um saco de algodão, o que seria mais respeitoso porque sacos de plástico preto não foram criados para um destino nobre humanamente originalmente. Senti-me grata novamente de qualquer forma por haver cuidado e respeito tanto quanto possível em seus sepultamentos e isto trouxe calma ao meu espírito, afastando qualquer revolta possível. Entretanto continuo pensando que nossas mortes poderiam ser menos terrificantes, com nossos corpos desfazendo-se em luz pelo ar ao invés de serem desfeitos pela terra ao apodrecerem sob ela. Então estou descobrindo que não sou tão corajosa e tão temente quanto tinha pensado que era e tenho procurado algumas vezes pensar em fazer o que meu avô gostaria que eu fizesse quando não sei o que escolher e tenho um impasse diante de mim quanto ao que socorrer em primeiro lugar. Lutar contra minha ira para não ser dominada por ela e ter meu merecimento em seu lugar sem transformá-lo em moeda de troca tem sido uma espécie de batalha interna para mim desde que minha ira assomou com tanta força.

Um anjo de morte começou a fazer sua ceifa em minha família, a quem ele não visitava havia muito tempo, trazendo lágrimas e tristezas de uma vez só em quantidade grande. Tenho porque estar em tanto estado de ira, mas isto não é minha razão única para tanta ira e não justifica que eu possa senti-la com tanta intensidade desta maneira embora explique-a muito bem em parte. Tenho sido grata pelas mensagens religiosas que encontro em uma estante de metal e vidro à entrada de nosso cemitério quando faço minhas visitas ao meu avô. São mensagens espíritas em sua maioria, com uma ou outra mensagem católica ou evangélica de vez em quando, colocadas ali para leitura de carinho e consolo às pessoas que perderam entes queridos e seguem seus cortejos fúnebres para sepultá-los. Sou grata pelo carinho e pelo consolo que aquelas mensagens trazem realmente para mim, mas não sou santa e nunca fui santa. Recebo seu benefício mas não torno-me santificada, portanto sei que é mais fácil que meu destino seja um local no inferno ao invés de um local no céu, pela ira que assoma ao meu coração e às minhas palavras com tanta facilidade ultimamente. Tudo o que eu esperaria que ainda fosse de meu merecimento ao morrer seria poder ir ao céu por um instante para dar um oi para meu avô, vendo-o por mais uma vez com seu sorriso feliz e lindo que surgia com tanta espontaneidade e naturalidade em vida.